O erros ortográficos e as repetições no Quarto de Despejo…

Se esse mundo novo do Booktube tem algo de bom (e tem), é exatamente essa propagação de informações sobre livros pouco conhecidos. Esse é o caso do Quarto de Despejo da Maria Carolina de Jesus, livro que só tive conhecimento por meio dessa comunidade de leitores.

Muito bem, com o livro em mãos, lá fui eu me embrenhar na história sofrida de uma mulher dos anos 50, moradora de uma favela paulistana, negra, mãe solteira de três filhos, catadora de papel. Ao chegar na última página, os sentimentos eram desencontrados: tristeza, raiva, pesar, revolta, medo, reconhecimento de meus privilégios, culpa…

Ao terminar essa leitura, minha certeza é de que todos os brasileiros deveriam ser obrigados, isso mesmo, obrigados a ler esse livro e entender o que fazíamos e continuamos fazendo com o nosso povo. Entender o quanto é mesquinha nossa posição isenta de responsabilidades frente às desigualdades sociais. Nós, os privilegiados, que não vivemos nessa situação de extrema penúria, também somos responsáveis por essa violência que acontece diariamente debaixo dos nossos delicados narizes, exatamente por nos portarmos como se o problema fosse dos outros e somente deles.

Enfim, mas esse post não é sobre o que me revolta, e sim sobre as opiniões diversas acerca do próprio livro Quarto de Despejo. Aqui, me aterei a somente duas delas: as repetições contidas na narrativa e os erros ortográficos mantidos por opção do jornalista Audálio Dantas, o curador dos diários da Carolina.

Em relação às repetições contidas na narrativa do livro, muitos disseram se incomodar com elas, achando que a leitura ficou enfadonha por conta disso.

Respeito quem assim entende, porém, não comungo da mesma opinião.

Para mim, tomando por base que o livro é uma transcrição dos diários íntimos da Carolina, a repetição somente demonstra o quanto a vida dela foi opressiva, sofrida e difícil. A vida é repetitiva e a repetição, para Carolina, era uma repetição da tristeza de uma vida abaixo da linha da miséria. As repetições, portanto, longe de serem um defeito, são exatamente os elementos que nos fazem entender o quanto a vida dela foi horrível, o quanto é difícil dormir com fome, o quanto é difícil lutar diariamente, faça chuva ou faça sol, com todas suas forças para conseguir alimentar dignamente a si e a seus filhos, sem conseguir.

Aqueles diários são retratos da vida dela, uma vida em que o sofrimento se repetia constantemente. Assim, as repetições não me incomodaram, pois me fizeram entender o quanto aquela realidade foi terrível. O quanto ela foi forte ao não sucumbir apesar de tudo e de todos.

Vida cheia de acontecimentos excitantes é para quem pode e não para quem quer. Nós, que podemos nos dar ao luxo de ter hobbies, ir a restaurantes, gozar de férias remuneradas, ter comida boa e farta todos os dias sobre a mesa, temos a obrigação (ou deveríamos ter) de entender que nem todos possuem os mesmos privilégios. Carolina só conhecia aquela repetição e assim transcreveu sua própria realidade, que, infelizmente, é a realidade de milhões de pessoas invisíveis para nós, os privilegiados.

Já em relação aos erros ortográficos mantidos por opção do jornalista Audálio Dantas, encontramos várias opiniões contra e a favor.

Os que são a favor defendem que a manutenção dos erros ortográficos dão veracidade ao livro. Que é um grito de liberdade à repressão da “norma culta”, o respeito às diferenças linguísticas. O rechaço ao preconceito linguístico. Uma ode à diversidade.

Eu juro que gostaria de pensar como essas pessoas, que viram nessa manutenção de erros aspectos tão positivos. Eu não os vi.

Nesse ponto específico, penso na recepção desse livro quando de sua publicação nos idos 1960. Naquela época, ninguém falava, ou mesmo tinha a percepção que se tem atualmente acerca do preconceito linguístico. Esse assunto está muito em voga hoje, mas a década de 60 não é conhecida como a década mais inclusiva da nossa história.

Tendo com base esse dado, ainda me pego pensando no fato de que o objetivo da língua escrita é passar uma mensagem. O livro da Carolina, com os erros de português mantidos, não me dão nenhuma informação além das que o próprio livro já fornece, de que Carolina só havia estudado até a segunda série do primário, que era moradora de uma favela, catadora de papel, negra, vivendo abaixo da linha da pobreza extrema.

Assim, se a língua escrita tem por objetivo passar uma mensagem e os erros não acrescentam nada além do que o próprio livro já informa, não vejo nenhum acréscimo legítimo na manutenção deles, ainda mais ao pensarmos que praticamente todos os livros levados ao prelo passam pela revisão minuciosa de revisores, que, pasmem, possuem como função precípua a revisão ortográfica dos textos escritos, revisando o material para corrigi-lo, conferir-lhe clareza e concisão, para, então, torná-lo inteligível ao leitor.

Indo além, ao imaginarmos que estes profissionais revisam textos de pessoas devidamente letradas, que, assim como Carolina, cometem (inúmeros) erros ortográficos, o ato de negar essa correção à Carolina não me parece a melhor das atitudes. Pessoas altamente letradas possuem direito à revisão, enquanto Carolina, escritora da favela, não.

Por estes e outros motivos, antes de ser uma virtude, o referido ato me pareceu a diminuição da escritora, colocando-a na posição de inábil usuária da língua escrita. Antes de demonstrar o exaltar de um escritor na favela, essa escolha de Audálio Dantas me pareceu somente o ato mesquinho de mostrar um favelado que tinha a audácia de escrever. No frigir dos ovos, somente mais uma atração destinada ao entretenimento, e troça, da classe média brasileira.

Além disso, a meu ver, o esquecimento proposital da obra nas décadas seguintes somente reforça essa minha opinião, pois o feio deve ser escondido. A sociedade brasileira, tão orgulhosa de sua propalada democracia racial, jamais poderia dar destaque a uma obra que evidenciava exatamente o contrário, e, de fato, assim o fez, relegando Carolina ao ostracismo forçado.

Para piorar o que já está bem ruim, ainda é importante saber que este livro chegou a ser considerado paradidático, no entanto, foi recusado pelas escolas brasileiras exatamente por conter erros de português. (Oh, que ironia do destino, não é mesmo?!?). E pensar que ninguém teve a brilhante ideia de fazer uma edição com os erros corrigidos para evitar o boicote escolar… Ah, o Brasil

Desta forma, após toda essa pororoca de chorume, só me resta a conclusão de que nada disso foi inocente. Que as escolhas dos envolvidos na publicação dos diários da Carolina não eram tão louváveis assim, e que ainda que o livro tenha sido publicado, somente o foi para aplacar a sede de uma sociedade que adora chafurdar em sua própria lama para depois aterrar seus dejetos no esquecimento.

LEIAM CAROLINA. PRESENTEIEM SEUS CONHECIDOS COM OS LIVROS DA CAROLINA. DISCUTAM OS LIVROS DA CAROLINA. ENTENDAM OS LIVROS DA CAROLINA. VIVAM EM SUAS MENTES A REALIDADE DA CAROLINA. FALEM SOBRE OS LIVROS DA CAROLINA. DIVULGUEM OS LIVROS DA CAROLINA. NÃO ESQUEÇAM CAROLINA MARIA DE JESUS!!!

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